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Transformação energética e o antitruste: a visão do presidente do Cade, Alexandre Cordeiro

(Foto: Crédito: ASCOM / Cade)
(Foto: Crédito: ASCOM / Cade)
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Nosso entrevistado da semana é o presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), o advogado e economista Alexandre Cordeiro Macedo. Ele é Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público e pós-graduado em Processo Administrativo Disciplinar pela Universidade de Brasília (UnB). Também é Visiting Scholar e International Fellow do Global Antitrust Institute da Antonin Scalia Law School – George Mason University, em Washington/DC. Desde 2006 é auditor de carreira na Controladoria-Geral da União. Cordeiro está no comando do Cade há 2 anos, e seu mandato se estenderá até julho de 2025.

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) é uma autarquia federal brasileira vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública e integra o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), ao lado da Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE). O órgão é responsável por investigar e decidir, em última instância, sobre questões concorrenciais, fomentar a cultura da livre concorrência, e analisar e decidir sobre fusões, aquisições de controle, incorporações e outros atos de concentração econômica entre grandes empresas que possam ameaçar a livre concorrência.

Confira entrevista exclusiva ao jornal Economic News Brasil:

ENB – Como o Cade tem atuado para proteger as empresas brasileiras de trustes praticados por empresas estrangeiras no mercado digital? Há necessidade de aprimorar o marco legal do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência?

AC – As atribuições do Cade são definidas pela Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011, e complementadas pelo Regimento Interno do Cade (RiCade). A autarquia exerce três funções: preventiva, repressiva e educativa. No eixo preventivo, cabe ao Cade analisar e posteriormente decidir sobre as fusões, aquisições de controle, incorporações e outros atos de concentração econômica entre grandes empresas que possam colocar em risco a livre concorrência. Em relação ao eixo repressivo, cabe à autoridade investigar, em todo o território nacional, e posteriormente julgar cartéis e outras condutas nocivas à livre concorrência. Por fim, existe também a atuação educativa, no qual busca-se instruir o público em geral sobre as diversas condutas que podem prejudicar a livre concorrência; incentivar e estimular estudos e pesquisas acadêmicas sobre o tema, firmando parcerias com universidades, institutos de pesquisa, associações e órgãos do governo; realizar ou apoiar cursos, palestras, seminários e eventos relacionados ao assunto; editar publicações, como a Revista de Defesa da Concorrência e cartilhas.

Apesar de não ser um tema novo, economia digital continua sendo um dos temas mais quentes na concorrência no Brasil e em diversas jurisdições do mundo. No Cade, a questão tem recebido cada vez mais atenção nos últimos anos. Além de publicar estudos sobre o tema, como os Cadernos do Cade sobre “Mercados de Plataformas Digitais”, em 2021, e o Documento de Trabalho “Concorrência em mercados digitais: uma revisão dos relatórios especializados”, em 2020, a autarquia brasileira promove e participa ativamente de debates realizados no país e no exterior.

As mudanças estruturais trazidas pela era digital refletem em alterações relevantes na atuação dos agentes econômicos e dos consumidores, o que, sem dúvida, motiva o aperfeiçoamento e a atualização de políticas de defesa da concorrência. Acredito que, em algum momento, todos os mercados se tornarão digitais, inclusive os que entendemos hoje como mercados tradicionais.  Assim, um dos principais desafios é a avaliação de quão intervencionista o Estado deve ser nesse mercado. Questões regulatórias, análise de conjuntos probatórios em investigações e aplicação de remédios antitruste, por exemplo, devem levar em consideração as características específicas destes mercados como a alta dinamicidade, inovações disruptivas, efeitos de rede, custos marginais baixos ou até mesmo zero, entre outras.

O Cade está atento a todas as discussões acadêmicas, do mercado, de outras jurisdições e de organismos internacionais para manter o nível de excelência da sua atuação no controle de estruturas e para combater infrações à ordem econômica em mercados digitais, observando suas competências legais.

ENB – A rápida mudança da matriz energética no país tem operado importantes transformações concorrenciais no setor. Como o Cade tem abordado esse tema?

AC – Tanto o setor privado quanto o governo desempenham papéis fundamentais no contexto das mudanças da matriz energética no país. Enquanto o setor privado impulsiona a inovação, a eficiência e a diversificação, o governo deve direcionar suas forças para setores em que as falhas de mercado são mais intensas, onde sua interferência pode ser necessária, fazendo a diferença de forma positiva.

Em relação à matriz energética, podemos nos orgulhar dos avanços alcançados pelo Brasil. Considerando os dados de 2022 da ONS, enquanto a média mundial de fontes renováveis é de apenas 27%, nossa matriz energética é composta por, aproximadamente, 80% de fontes renováveis. No entanto, é importante destacar que ainda carecemos de diversificação nessa matriz. A grande dependência da geração hídrica de energia revela uma vulnerabilidade que precisa ser superada.

Um dos principais impulsionadores da competitividade no setor energético é a concorrência entre os players. Em termos de operações de fusões e aquisições, que no Cade chamamos de atos de concentração, nos últimos dez anos (2012-2022), constatamos que 17% dos atos de concentração notificados ao Cade anualmente se relacionavam ao mercado de energia, isto é, uma média de 85 casos por ano. Destaca-se que nem toda operação de fusão e aquisição é obrigatoriamente notificada ao Cade, apenas aquelas que preenchem os requisitos de faturamento estabelecidos na Lei 12.529/2011 e, posteriormente, alterados pela Portaria Interministerial 994 de 2012.

Dentro do setor de energia, a indústria de geração elétrica desempenha um papel crucial ao assegurar o fornecimento de energia ao consumidor final. É importante ressaltar que essa indústria é uma das líderes em notificações de atos de concentração ao Cade. Cerca de 60% dos atos relacionados ao mercado de energia se referem à energia elétrica. Embora a maioria desses casos tenham uma análise mais simples, o que chamamos de procedimento sumário, devido à baixa participação de mercado em todos os cenários, é necessário estar atento a possíveis condutas anticompetitivas, como cartel, discriminação de preços, fixação de preços de revenda, preço predatório e aumento abusivo de preços.

O Cade tem desempenhado um papel significativo na promoção da concorrência no setor energético. Um exemplo disso é o trabalho realizado no setor de refino de petróleo e distribuição de combustíveis líquidos e no mercado brasileiro de gás natural.

ENB – O que o país pode esperar da inédita eleição de um representante brasileiro para a Diretoria-Executiva da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico)?

AC – A representação brasileira na OCDE é de extrema relevância para o Brasil, principalmente porque possibilita maior influência do país nas principais decisões do Comitê de Concorrência da Organização e participação mais ativa no processo de elaboração de políticas públicas em matéria antitruste no mundo.

Além disso, viabiliza o fortalecimento de relações com os países-membros e o fomento de discussões em grupos de trabalho nos quais é possível tratarmos de temas de interesse para o nosso país. As recomendações de melhores práticas, avaliação de políticas e produção de dados que ocorrem na OCDE são instrumentos de suma importância para o desenvolvimento nacional e para a integração do Brasil com outros países.

No entanto, destaco que o Cade sempre teve intensa participação no Comitê de Concorrência da OCDE, com interesse em alinhar suas políticas públicas às melhores práticas internacionais, de forma sistemática, harmoniosa e coerente, observando os padrões de excelência da Organização. Nesse contexto, o primeiro resultado da estreita colaboração do Cade com a OCDE ocorreu em 2019, quando o Brasil foi aceito como membro permanente do Comitê de Concorrência da entidade.

ENB – Em um mercado global marcado pelo dinamismo, é possível apontar tendências para o futuro do antitruste?

AC – Devo dizer que existem algumas prioridades para a agenda antitruste do Cade para 2023-2024 e, acima de tudo, muitos desafios. Em termos de controle prévio, análise de fusões ou aquisições, dentre outras, as operações que envolvem integrações verticais são um assunto extremamente relevante. No ano passado, avaliamos casos importantes envolvendo integrações verticais e teorias de danos relacionadas ao assunto, incluindo riscos de exclusão de mercado e práticas de self-preferencing. Esse tema certamente desempenhará um papel importante no controle de estruturas conduzido pelo Cade nos próximos anos.

Com relação a condutas anticompetitivas, como as condutas unilaterais são julgadas de acordo com a regra da razão e precisam comprovar seus efeitos concorrenciais negativos para serem punidas, os processos eram semelhantes aos processos de análise de prévia de operações e diferentes dos processos de cartel, razão pela qual, inicialmente, unificamos essas análises nas mesmas coordenações. No entanto, um problema prático apareceu. Como os casos de análises de controle de estruturas têm um prazo determinado para serem julgados, enquanto não há prazo para julgar um caso de conduta unilateral, as operações tinham prioridade sobre os casos unilaterais. Em 2022, ao criar uma unidade especializada em condutas unilaterais, o Cade buscou reequilibrar a balança para realizar mais investigações de condutas unilaterais.

A autoridade tem se mantido vigilante a casos relacionados a existência de acordos de exclusividade, especialmente a acordos de fato por empresas dominantes que podem resultar em exclusão de mercado. Inclusive, o Tribunal do Cade anunciou, recentemente, acordos nos setores de entrega de alimentos on-line e academias, sinalizando a importância das medidas preventivas adotadas anteriormente nesses casos, bem como a tendência crescente de fiscalização nos mercados digitais.

O Cade tem obtido excelentes resultados em investigações de condutas unilaterais, o que mostra que está atento às tendências antitruste nesse assunto. Nesse sentido, podemos esperar que investigações de condutas unilaterais estejam entre as prioridades de fiscalização da autoridade de defesa da concorrência.

No que diz respeito ao combate a cartéis, nossa prioridade é aprofundar a cooperação com o Ministério Público, que têm competência legal para conduzir ação penal contra essa prática. O Cade já possui acordos ativos de cooperação técnica com os 27 Ministérios Públicos Estaduais e com o Ministério Público Federal, e o objetivo é fortalecer esses laços com resultados tangíveis em termos de compartilhamento de provas, realização de buscas e apreensões conjuntas e outras iniciativas substanciais para fortalecer a fiscalização pública contra cartéis na jurisdição brasileira.

É importante promover nossa cooperação com outros órgãos governamentais, bem como com o setor privado, a fim de entender melhor como cada decisão afetará o mercado. Portanto, nosso objetivo é transmitir uma mensagem clara aos nossos interessados. Em essência, isso significa que buscamos fornecer transparência em relação à nossa avaliação e nossos procedimentos na medida em que a análise antitruste nos permite.

Preservar um ambiente competitivo e se ater aos objetivos do direito concorrencial em todo o mundo é um aspecto fundamental para que as autoridades antitruste não expandam suas competências além do que previsto na sua missão institucional. Essa é uma discussão atual e muito complexa. Entendo que a participação em fóruns internacionais oferece a possibilidade de dialogar com autoridades de outros países para que consigamos falar a mesma língua na análise antitruste, sem atribuir ao direito concorrencial e à autoridade antitruste tudo aquilo que não é resolvido por outra instituição.