*Coluna por Beatriz Canamary, 05/10/22
A crise do COVID, os conflitos territoriais, a crise climática e o aumento de preços, juntos, contribuíram para gerar uma ameaçade fome a 828 milhões de pessoas em todo o mundo em 2022. O número de pessoas que já enfrentam fome aguda em todo o mundo aumentou de 135 milhões para 345 milhões desde 2019.
Enquanto a demanda por alimentos aumenta, a capacidade de oferta vem atingindo seus piores níveis. Segundo dados do Programa Mundial de Alimentos (PMA), US$ 24 bilhões são necessários para suprir cerca de 153 milhões de pessoas em 2022 e muitos países não produzem o suficiente para seu próprio consumo.
Mas por que o mundo há mais fome do que nunca?
Segundo ao ONU, a crise de fome aguda é causada por uma combinação de quatro fatores:
Em regiões subdesenvolvidas do hemisfério sul, retirar da boca dos que já passam fome para alimentar novos famintos se tornou uma prática comum, levando a um aumento de migração de pessoas, desestabilização econômica e conflitos.
Conflitos
A guerra da Rússia com a Ucrânia está atingindo a comercialização global de alimentos que já vem prejudicadapelo COVID-19, por mudanças climáticas, e agora agravadapela crise energética.
Assim como o fornecimento de gás, a Rússia vem usando a escassez de alimento como arma de guerra, com as exportações de grãos e sementes da Ucrânia praticamente paralisadas e as da Rússia ameaçadas. Juntos, os dois países contribuem com cerca de 12% do comércio de alimentos no mundo. São responsáveis por cerca de 28% do trigo, 29% de cevada, 15% de milho e 75% de óleo de girassol consumidos mundialmente. As exportações de alimentos da Ucrânia alimentam 400 milhões de pessoas. Seus pastos, prejudicados pela guerra, estão cheios de milho e cevada e os agricultores não têm onde armazenar suas colheitas, podendo levar à perda e inviabilidade de um novo plantio parauma nova safra, devido à carência de mão de obra e matéria prima.
Fertilizantes também sofrem com dificuldades de comercialização internacional. Limitar o acesso dos agricultores aos fertilizantes impacta diretamente na produção de alimentos.
Se a guerra entre Rússia e Ucrânia perdurar, que é o que tem se mostrado, e o suprimento de alimentos desses dois países continuar limitado, centenas de milhões de pessoas a mais poderão entrar na zona de pobreza.
Aquecimento climático
Mas não é apenas a invasão da Ucrânia pela Rússia que contribui para o aumento da fome global.
As mudanças climáticas também afetam diretamente as condições de crescimento das culturas em diversos países em todo o mundo.
Os preços do trigo, que subiram 53% desde o início do ano, saltaram mais 6% em maio, depois que a Índia suspendeu as exportações do cereal devido à uma onda de calor alarmante.Além das temperaturas extremas, a escassez de chuva ameaça o novo plantio, impactando o abastecimento de regiões em todo o mundo.
A China, maior produtora de trigo, sinalizou que a escassez de chuvas em 2021 levou à pior safra em 2022 nos últimos tempos.
A região da Somália está sendo devastada por sua pior seca nas últimas quatro décadas.
Tudo isso tem um efeito grave sobre a população subdesenvolvida. As famílias em economias emergentes gastam 25% de seus orçamentos em alimentos — e na África, até 40%. Em muitos países importadores, os governos não podem aumentar subsídios para alimentar sua população devido à elevada dívida pública já existente.
Alta de preços
Apesar do aumento dos preços dos grãos nessas regiões, agricultores em outras partes do mundo podem não conseguir compensar o déficit. Uma das razões é que os preços de alimentos são voláteis. E com o aumento dos preços de fertilizantes e de energia, as margens de lucro dos agricultores estão cada vez mais encolhidas. Fertilizantes e energia representam os principais custos dos agricultores; e ambos os mercados estão sob forte turbulência.
A alta de preços dos alimentos básicos já elevou de 440 milhões para 1,6 bilhão o número de pessoas em risco de fome.
Muitos países produzem alimentos como commodities e não como próprio subsídio, pois podem ser produzidos em larga escala e estocados sem perder a qualidade, além de ajudar a reduzir a dívida pública e aquecer a economia. Aqui, destacam-se grãos como soja, trigo, milho, além do café. E a pandemia ajudou a tornar o cultivo de commodities ainda mais atraente.
Além disso, muitos alimentos são usados para produzir biocombustível ou para alimentar animais. De acordo com a ONU, cerca de 18% dos óleos vegetais vão para o biodiesel e 10% de todos os grãos são usados para fazer biocombustível e 13% para ração seca do gado. Em 2021, a China importou 28 milhões de toneladas de milho para alimentar seus porcos, mais do que as exportações da Ucrânia em um ano.
Soluções – Inovação Tecnológica e Infraestrutura
A crise de fome global é tão severa que subsídios para a produção convencional de alimentos não deverão resolver totalmente o problema.
Inovações tecnológicas na agricultura são de extrema importância. Sementes e culturas que se adaptem às mudanças climáticas e resistam às pragas agrícolas devem ser projetadas. Um aumento da produção agrícola através do uso de sementes modificadas, fertilizantes e pesticidas modificados pode ser uma solução.
Alternativas de intervenção agroecológica como o desenvolvimento de bancos de sementes, sistemas de compostagem para promover a saúde do solo, pesticidas que não dependem de produtos químicos e modelos computacionais que consigam medir a perda de culturas causada por doenças ou pragas, podem servir como soluções inovadoras. Com o tempo, essas abordagens poderão reduzir a alta demanda porinvestimentos e poderão criar sistemas agrícolas cada vez mais resilientes.
A infraestrutura também desempenha um papel fundamental nesse cenário. Sem infraestrutura adequada, alimentos e fertilizantes não podem se escoados. E a construção e manutenção dessa infraestrutura depende diretamente da iniciativa de governos que hoje estão lutando para conter a dívida pública, dilatada com a crise do COVID-19.










