Abrir uma empresa deveria significar gerar empregos, produzir riqueza e pagar impostos. Mas, no Brasil, há companhias que escolhem outro caminho: transformam a inadimplência fiscal em modelo de negócio. Esse perfil, chamado de devedor contumaz, virou o alvo principal do projeto aprovado pelo Senado na terça-feira (02/09). A proposta cria o Código de Defesa do Contribuinte (PLP 125/2022) e promete separar quem deve por dificuldade real de quem nunca pretendeu pagar tributos. O texto segue agora para análise na Câmara dos Deputados.
O que é devedor contumaz e o que muda na prática
O conceito de devedor contumaz não se confunde com o inadimplente eventual. Trata-se de empresas que estruturam toda a atividade econômica para sonegar. O substitutivo aprovado no Senado define critérios objetivos:
- Em nível federal, será considerado devedor contumaz quem tiver dívida injustificada superior a R$ 15 milhões e maior que 100% do patrimônio conhecido;
- Em estados e municípios, a classificação valerá para inadimplência em 4 períodos consecutivos ou 6 alternados em 12 meses.
As consequências são duras: o devedor contumaz não terá acesso a benefícios fiscais, ficará impedido de participar de licitações públicas, de celebrar contratos com o poder público e até de ingressar em recuperação judicial.
Devedor contumaz e a operação Carbono Oculto
Embora o PLP 125/2022 tenha sido apresentado em 2022, a votação acelerada ocorreu após a operação Carbono Oculto, da Polícia Federal. A investigação revelou como distribuidoras de combustíveis e fundos de investimento foram usados para lavagem de dinheiro e evasão fiscal, com participação de fintechs e até de facções criminosas, como o PCC.
A Receita Federal estima que cerca de 1.200 CNPJs concentram R$ 200 bilhões em dívidas tributárias sem perspectiva de recuperação. Esse cenário ajudou a construir consenso no Senado de que o devedor contumaz é uma ameaça direta à concorrência leal e ao ambiente de negócios.
Setores mais propensos a sonegação
A prática da contumácia fiscal é recorrente em setores de grande circulação de mercadorias e alta possibilidade de esconder patrimônio. Entre os mais expostos:
- Combustíveis: distribuidoras de fachada e postos registrados em nome de laranjas;
- Varejo de alto giro: comercialização de grandes volumes com emissão irregular de notas fiscais;
- Bebidas e derivados: produção paralela ou adulterada para reduzir carga tributária;
- E-commerce cinza: vendas digitais de produtos importados irregularmente ou sem nota fiscal.
Essas atividades, pela velocidade e pelo volume de transações, são terreno fértil para empresas conhecidas como “casca de ovo”: no papel, parecem regulares, mas na prática não possuem patrimônio ou estrutura operacional real.
Direitos e deveres do devedor contumaz na nova lei
Além de definir sanções, o Código de Defesa do Contribuinte lista direitos básicos, que também se aplicam em casos de contumácia:
- direito a atendimento com respeito e linguagem clara;
- acesso a processos administrativos e prazos razoáveis de decisão;
- sigilo das informações do contribuinte;
- possibilidade de recorrer de decisões contrárias.
Em contrapartida, o contribuinte — inclusive o devedor contumaz — deverá cumprir suas obrigações tributárias, declarar operações relevantes, guardar documentos fiscais e acatar decisões judiciais e administrativas.
Programas de conformidade e incentivo ao bom pagador
O texto aprovado não foca apenas em punição. Foram criados programas de conformidade, como o Confia e o Sintonia, que beneficiam empresas regulares com vantagens como:
- bônus de adimplência de até R$ 1 milhão na CSLL;
- prioridade na análise de processos administrativos;
- flexibilização de garantias em execuções fiscais;
- canais simplificados de atendimento com a Receita Federal.
A ideia é reforçar a lógica de que cumprir a lei pode ser mais vantajoso do que tentar burlar o sistema.
Devedor contumaz: lei terá impacto real ou será decorativa?
A grande questão é se o texto aprovado terá efetividade. Há avanços importantes:
- Critérios claros de identificação.
- Punições econômicas diretas, que atingem benefícios, contratos e acesso a crédito.
- Prazo de defesa de 30 dias, com rito simplificado para evitar recursos intermináveis.
Por outro lado, existem obstáculos:
- Judicialização: advogados podem alegar “sanção política” e contestar restrições como o veto à recuperação judicial.
- Estratégias empresariais: grupos sofisticados podem dispersar ativos para escapar dos limites de patrimônio.
- Integração de dados: sem cruzamento eficiente entre Receita, ANP, Bacen e fiscos estaduais, o devedor contumaz pode simplesmente migrar para outro CNPJ.
Diagnóstico final
O projeto aprovado no Senado é fruto de anos de debate, mas ganhou fôlego após escândalos que associaram evasão fiscal a esquemas criminosos. A rapidez da votação reflete a urgência em coibir práticas que corroem a concorrência e fragilizam setores estratégicos da economia.
Se for bem executada, a lei pode reduzir a concorrência desleal, aumentar a segurança jurídica e valorizar empresas que cumprem suas obrigações. Caso contrário, o devedor contumaz continuará operando à margem, e o texto corre o risco de se tornar apenas mais uma promessa de endurecimento sem aplicação prática.









